“Efeito-preguiça”,
estímulo ao aumento do número de filhos e o gasto inadequado do
benefício são alguns dos preconceitos que o Bolsa Família desconstruiu
ao longo de seus dez anos. Resultados positivos tornaram o programa
referência mundial
Arlinda Carvalho, Ascom/MDS
“As mulheres vão ter mais filhos para receber mais dinheiro do
governo”. “As pessoas vão deixar de trabalhar para viver de benefício
social”. “É claro que as famílias vão gastar mal o dinheiro”. Quando o
Bolsa Família nasceu, crenças como essas eram comuns entre aqueles que
não acreditavam no programa. Hoje, porém, ele completa dez anos
colecionando bons resultados e aclamado pela comunidade internacional
como um dos mais bem-sucedidos programas sociais do mundo. Estudos
científicos e pesquisas revelam que, mais do que aliviar a pobreza
monetária, o Bolsa Família alcançou impactos notáveis na saúde, na
educação, na segurança alimentar e nutricional de milhões de brasileiros
e brasileiras.
A própria trajetória de mudança nas vidas
dessas pessoas tratou de derrubar, um a um, os mitos que rondavam o
Bolsa Família no seu nascimento. Histórias como a de Samuel Rodrigues,
27 anos, morador de Belo Horizonte (MG), e a de Odete Terezinha Dela
Vechio, 45 anos, de Guaíba (RS). Ele, ex-flanelinha. Ela, uma
carpinteira. Dois brasileiros que venceram a pobreza com a ajuda do
maior programa de transferência de renda do país e cujos exemplos
ilustram como as crenças negativas contra o Bolsa Família revelaram-se
meros preconceitos infundados.
De flanelinha a empresário: o mito do “efeito preguiça”
Todos
os dias, Samuel Rodrigues, 27 anos, acorda às 5h30 da manhã, escolhe
uma calça jeans e uma camiseta básica preparadas na véspera e senta-se à
mesa com a mulher, Ana Cristina, que tem a mesma idade do marido.
Depois, desperta o filho Simon, de três anos, e prepara-se para uma nova
jornada. O carro popular ano 2011, à porta, simboliza o progresso que
ele conquistou e, ao mesmo tempo, uma aposta em um futuro ainda mais
próspero.
Ex-beneficiário do Programa Bolsa Família, Samuel
exibe com orgulho, por onde anda, fotocópias de cartazes de sua empresa,
um lava a jato móvel: Samuca Lavacar - Higienização Automotiva. “Minha
proposta é levar à casa do cliente a mesma qualidade dos serviços de um
lava a jato convencional e por um preço mais em conta”, explica. Ele é
um dos 350 mil microempreendedores individuais brasileiros, oriundos do
Bolsa Família, que hoje incrementam a economia formal do país.
O
exemplo do ex-flanelinha – que já foi garçom, motorista, ajudante de
pedreiro e embalador em supermercados – derruba um dos mitos mais comuns
do Bolsa Família: o de que o benefício mensal estimula o “efeito
preguiça”, levando seus beneficiários à acomodação. Segundo o Censo
2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 75,4%
dos beneficiários do Bolsa Família trabalham. Desde o lançamento do
programa, em 2003, 1,7 milhão de brasileiros deixaram de receber o
benefício por não precisar mais da ajuda do governo.
Para o pesquisador Rafael Moreira, autor do estudo Empreendedorismo
e Inclusão Produtiva: uma análise de perfil do microempreendedor
individual beneficiário do Programa Bolsa Família, as pesquisas não
mostram nenhuma tendência dos beneficiários a deixar o mercado formal
de trabalho ou a trabalhar menos. “Diversos autores mostram que o mito
da acomodação no Bolsa Família não se comprova. Pelo contrário, em
muitos casos a gente vê que o empreendedorismo surge como forma de
completar a renda, dando mais segurança à família para conquistar
autonomia e sair do programa”, avalia Moreira.
Segundo ele, o
número de microempreendedores individuais – aqueles com rendimento anual
de até R$ 60 mil – oriundos do Bolsa Família saltou de pouco mais de
100 mil, em 2011, para cerca de 350 mil, atualmente. Para Samuel, montar
seu próprio negócio trouxe mais segurança e bem-estar à família, além
da esperança de oferecer um futuro melhor para o filho.
“Antes,
as pessoas não me respeitavam muito; achavam que lavador de carro não
queria trabalhar de verdade. Agora, com minha empresa formalizada, ganho
o suficiente para me sustentar, passo nota fiscal, sou respeitado pelos
clientes, tenho crédito na praça”, comemora o ex-flanelinha, que lava
seis carros por dia, em média, e cobra entre R$ 25 e R$ 30 por lavagem,
dependendo do tamanho do veículo. “Eu atendo os clientes em casa e nas
empresas e todos se mostram muito satisfeitos com o meu trabalho”,
orgulha-se.
Famílias gastam com alimentos, material escolar e roupas
Samuel conta que, ao conquistar a independência financeira, ele e a
mulher devolveram voluntariamente o cartão do Bolsa Família. “O
benefício nos ajudou muito, principalmente quando o Taimon nasceu. A
gente separava o dinheiro para a alimentação dele. Comprava leite,
iogurte, biscoito, o que ele precisasse”. A experiência dele confirma
resultados de pesquisas recentes que jogam por terra um segundo mito
envolvendo o programa: o de que os beneficiários gastam mal o dinheiro.
Estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas (Ibase), em 2008, revelou que alimentação, material escolar e
vestuário são os itens em que as famílias mais gastam o benefício
mensal. A pesquisa pediu que os titulares do cartão apontassem os itens
em que o dinheiro do Bolsa Família era mais aplicado, podendo indicar
até três. No geral, 87% das famílias apontaram a alimentação como
principal gasto – na região Nordeste esse percentual chegou a 91% e, no
Sul, 73%. O material escolar aparece em segundo lugar, com 46%, e o
vestuário com 37%.
Estudos mais recentes têm confirmado essa
tendência. No Norte e Nordeste, por exemplo, o impacto do programa é
31,4% maior que no restante do país. Além disso, as famílias atendidas
pelo Bolsa Família gastam mais do que as não-beneficiárias com grãos e
cereais, aves e ovos, carnes, pães, legumes, óleos e bebidas não
alcoólicas, indicando que o programa contribui para a segurança
alimentar e nutricional de crianças e adolescentes.
Segurança e poder para mulheres: a história de Odete
Marcelo Curia
Quem
visitar um dos canteiros de obras no município de Guaíba, a cerca de 32
quilômetros de Porto Alegre (RS), poderá se surpreender. Lá, é comum
ver mulheres como Odete Terezinha Dela Vechio, 45 anos, de jaleco,
calça, botas e capacete dividindo espaço com homens na construção civil.
O trabalho pesado não é motivo de preconceito contra mulheres nessa
pequena cidade com menos de 100 mil habitantes.
Com ferramenta
nas mãos, Odete, que é carpinteira e armadora de ferragens, impressiona
pela garra, força e vontade de trabalhar. Beneficiária do Bolsa Família,
casada e mãe de três filhos, hoje com 15, 18 e 25 anos, ela protagoniza
uma nova etapa na história social do Brasil – o empoderamento das
mulheres e sua ascensão em um mercado de trabalho antes ocupado
majoritariamente pelo sexo masculino.
“Fui bem aceita nessa
nova profissão e sou respeitada por meu marido, meus filhos e meus
colegas da empresa”, diz Odete, que concluiu os cursos de armadora de
ferragens e carpintaria pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensino
Técnico e Emprego (Pronatec), iniciativa do governo federal para
promover a capacitação técnica de brasileiros e da população mais pobre
atendida pelo Plano Brasil Sem Miséria.
Odete construiu, ela
mesma, um quarto novo em sua casa. “É bom demais ver uma obra que gente
mesmo fez”, contenta-se. “Também ajudei a construir os apartamentos do
programa Minha Casa Minha Vida aqui na cidade. Eu saí antes de a obra
terminar, mas, quando vi na televisão tudo prontinho, bonitinho, chamei
minhas amigas e disse ‘olha, eu ajudei a construir’.”
A
história de Odete também derruba os mitos da acomodação e do dinheiro
mal gasto por quem recebe o Bolsa Família. “Eu trabalho muito e sempre
fiz de tudo. O que recebo do governo é gasto com o transporte escolar da
minha filha mais nova”, diz. Ela conta que o benefício também a ajudou a
criar a neta quando os pais da criança passavam por uma situação
difícil.
Avaliações sobre o impacto do programa revelam que a
segurança de renda proporcionada pelo Bolsa Família contribui para
aumentar o poder de decisão das mulheres no lar, o que as leva,
inclusive, a questionar a dominação masculina. Estudos de avaliação de
impacto do Bolsa Família, realizados pelo MDS, mostram que a
participação das mulheres nas decisões sobre compra de remédios para os
filhos, por exemplo, aumentou oito pontos percentuais entre 2005 e 2009.
Nas decisões sobre gastos com bens duráveis, a participação feminina
subiu 5,3 pontos percentuais no mesmo período.
“O Bolsa Família
deu às pessoas a dignidade que a miséria retirou”, diz Walquíria Leão
Rego, socióloga e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Durante cinco anos, entre 2006 e 2012, Walquíria e o
professor de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de Santa
Catarina, Alessandro Pinzani, percorreram regiões de Minas Gerais,
Alagoas, Piauí e Maranhão e acompanharam 150 mulheres beneficiárias do
Bolsa Família, para estudar o efeito do programa de transferência de
renda sobre suas vidas. Eles são autores do livro Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania, da editora Unesp.
Preconceito é contra o pobre, diz socióloga
Para Walquíria, as crenças negativas em torno do Bolsa Família não
passam de preconceito de uma elite que não conhece os efeitos perversos
da pobreza. “Qualquer política distributiva é objeto de críticas aqui e
em qualquer lugar do mundo. Na verdade, o preconceito é contra os
pobres”, analisa. A socióloga reage irritada aos mitos em torno do Bolsa
Família e pondera que a ajuda não é a salvação de todos os males
sociais causados em mais de 500 anos de história, porém causa impactos
importantes na vida das pessoas. “Mesmo pequena, a transferência de
renda já trouxe muitos benefícios para a população mais pobre,
garantindo não apenas o alimento, mas a segurança e o direito à vida”,
afirma.
Para o secretário nacional de Renda de Cidadania do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Luis
Henrique Paiva, o Bolsa Família contribuiu para retirar da extrema
pobreza mais de 36 milhões de pessoas nos últimos anos e isso mostra a
importância estratégica do programa na transformação do Estado
brasileiro.
“Antigamente, um contingente significativo da
população ficava à margem das políticas sociais. Com o Bolsa Família e
outras ações governamentais, conseguimos chegar às famílias que mais
necessitam do poder público e quebrar preconceitos contra os mais
pobres”, afirma o secretário. Ele acrescenta que a transferência de
renda e as políticas sociais do governo contribuíram para reduzir a
desigualdade social, motivada pelo fator renda, entre 15% e 20% no
período de 2001 e 2011.
Taxa de fecundidade, saúde, educação e a “Felicidade Interna Bruta”
O mito de que o Bolsa Família estimula o aumento do número de filhos e
faz prolongar o ciclo geracional da pobreza é outro que caiu por terra
nestes dez anos. Ao contrário, o número médio de filhos entre as
mulheres mais pobres diminuiu. Análise feita com base nos Censos
populacionais de 2000 e 2010, do IBGE, aponta que o grupo de mulheres
mais pobres apresentou recuo de 30% no número médio de filhos, enquanto a
média nacional foi de 20,17%.
Na avaliação do presidente do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Néri, os
impactos positivos do programa refletiram de forma evidente nas áreas de
saúde e educação. Segundo ele, os levantamentos mostram aumento na
frequência escolar e queda da evasão escolar de crianças e adolescentes
beneficiárias do programa, vacinação em dia, queda da mortalidade de
crianças menores de cinco anos, aumento do número de gestantes
acompanhadas no pré-natal e redução de doenças relacionadas à pobreza.
Neri ressalta que o custo-benefício é a maior vantagem do modelo
brasileiro de transferência de renda condicionada. O orçamento do Bolsa
Família corresponde a apenas 0,5% do Produto Interno Bruto e cada R$ 1
transferido para as famílias se transforma em R$ 1,78 na economia do
país”, afirma. Segundo Neri, “o Bolsa Família também contribui para a
Felicidade Interna Bruta das famílias mais pobres”. Ele se refere a uma
corrente progressista de pensamento, segundo a qual a riqueza de uma
nação deve ser medida pelo grau de qualidade de vida e de bem-estar da
população.
Felicidade
é a palavra que define o momento atual do ex-flanelinha Samuel
Rodrigues. Tornar-se dono do seu próprio negócio trouxe estabilidade e
bem-estar para a família. “Eu e minha mulher estamos mais felizes,
queremos crescer juntos e dar uma boa educação para o Simon”, diz o
microempreendedor individual, que pensa em concluir o segundo grau e
fazer cursos de polimento e lubrificação de automóvel. “Amo o que faço
e, para chegar até aqui, é preciso garra e persistência, não desistir
nunca”, ensina. Ele quer se capacitar e aumentar o negócio de lava a
jato, contratando pelo menos um ajudante.
A carpinteira Odete
também pretende conquistar autonomia e melhorar as condições financeiras
da família. “Meu marido está ‘encostado’ temporariamente por acidente
de trabalho e eu sempre corri atrás, sempre lutei e pretendo lutar
sempre.”
Edição: Valéria Feitoza, do MDS